Wednesday, September 27, 2006

A Francofose

banda sonora - The Smiths - There is a light that never goes out

O presente texto deveria ser acompanhado pela imagem do quadro metamorfose da Paula Rego, infelizmente, há já alguns posts para cá que não tenho conseguido fazer upload de imagens.


F. acordou e sentiu-se quente, suado, extremamente irritado pela luz. Olhou para si próprio e encheu-se de terror. O seu corpo, encontrava-se transformado no de um horrivel insecto.

Rebolei sobre a minha casca, aparentemente não foi dificil colocar-me sobre as patas e corri para a casa de banho. Tomei um excelente banho depois de um complicado esforço de abrir a agua com as minhas quatro patas dianteiras enquanto aguentava o enorme peso do meu corpo sobre as duas patitas que me restavam. A luz era extremamente desagradável, por isso tomei banho às escuras.

Tentei vestir-me, foi um esforço inutil, a minha roupa não me servia. Pensei como seria sair à rua assim e pensei seriamente ficar no quarto o dia todo a chorar a minha triste fortuna que me havia feito acordar transformado num insecto. “Podia ser pior” - pensei para mim – “ao menos sou grande o suficiente para não ser pisado e acabar a minha vida sob a sola de um enorme pé holandês”.

Mas não podia ficar no quarto, tinha de tratar de tanta coisa... saí da casa com algum temor de ser visto por alguém. Um pouco inútil já que quando chegasse à rua não poderia esconder a minha horrivel condição. Ao menos no meio de tanta pata e baba que, aparentemente, me saía incontrolavelmente pelo que outrora fora uma boca, hoje uma estranha glangula de sucção de alimentos, ninguém notaria o facto de não ter qualquer roupa. De qualquer forma, a ideia de enojar um estranho na rua parecia mais agradável que qualquer das pessoas que vive no prédio.

Estranhamente, na rua ninguém teve qualquer reacção fora do comum, é como se para eles eu fosse uma pessoa normal. Certamente, a minha condição de insecto era apenas aos meus olhos visível, o que fazia de todo o meu terror não menor problema do que se fosse visto por todos. Talvez acabasse, caso fosse visível ao olho comum o meu estado, dentro de um frasco de formol em qualquer escola de ciência para ser estudado, mas assim, insecto apenas perante eu próprio, senti um pavor de perpetuar a minha existência nesta condição, o que para todos os efeitos, me parece como um dos mais terriveis castigos que poderemos sofrer na vida.

Dirigi-me à Agência através da qual encontrei a minha casa. Aqui, de forma a fazer o contrato de arrendamento, necessitava uma declaração negocial de interesse da casa de forma a garantir que não era arrendada a outra pessoa. O espaço encontrava-se algo escuro, o que para mim era agradável, especialmente quando o nevoeiro que se fazia sentir em Leiden já estava a desaparecer e o sol incomodava-me. A funcionária perguntou se eu queria um copo de água, mas com medo de não o conseguir beber, ou antes ingerir já que não sei se beber é um possivel termo aplicável, educadamente recusei. A minha cauda (sim, cauda, porque não ser um insecto com cauda) desastradamente atirou uma caneta ao chão a qual não apanhei com medo de me desiquilibrar na minha massa corporal disforme, toda esta situação, que poderia ser vista como inofensiva na verdade não foi, pois causou um enorme mal-estar com a funcionária da agência. Depois de ler todos os papeis várias vezes (já que na minha esfera visual conseguia ver vários angulos do papel para onde olhava), conclui que necessitava fazer uma transferência bancária e indicar o meu banco cá na Holanda. Pressionado por toda a situação, a minha deformação horrível, a atitude passiva de quem parecia estar a olhar para uma pessoa e todo o mau estar causado pela caneta fez com que, em vez de calmamente procurar uma solução, fugisse dali para fora prometendo voltar quando tivesse uma conta bancária.

No ABN-AMRO, mais humanos. Aparentemente a minha situação é única, ou então também a mim, mesmo insecto, os outros me parecem humanos normais. No banco fui informado que, para abrir uma conta, necessitaria de uma declaração donde constasse a minha futura morada. Excusado será dizer que, tentei explicar à funcionária como a abertura da conta teria de ser forçosamente previa a ter casa de forma a poder ter uma casa. A funcionária ficou impassivel. Desisti.

Na verdade, tinha no caminho passado por uns 4 caixotes de lixo e sentido alguma fome, descia a rua sobre as minhas quatro patas enquanto coçava o queixo e com a outra chutava uma garrafa de fanta pelo caminho fora. “Porque é que os bancos nos pedem uma morada? Mas por acaso alguém vai depositar dinheiro num banco para depois desaparecer sem rasto e nunca mais dar noticias?”.

Bem, dirigi-me à Camara Municipal. O Municipio é uma peça essencial em todo este processo, lá necessito obter a minha residencia legal, documento imprescindivel, tanto para abrir uma conta como para alugar a casa. Claro que por esta altura me sentia mais conformado com a minha nova grotesca aparência física, além do mais, numa câmara municipal certamente veria mais bizarros animais por detrás do balcão. Citando a arara que me atendeu, como me custa aceitar a forma como olham para mim, como se fosse um normal ser humano, “Sendo aluno deve tratar de todo o processo através do Gabinete de Relações Internacionais da Universidade”.

Mas, de novo aqui, no Gabinete de Relações Internacionais da Universidade de Leiden me pedem uma morada.

Pelo que, de forma a obter residencia tenho de ir à Universidade. Os serviços da Universidade pedem-me um documento comprovativo da minha residência, de forma a ter um sitio onde morar, necessito demonstrar a minha residência e abrir uma conta no banco. Para abrir uma conta no banco, necessito tanto de obter a residencia como ter um local onde morar.

Derrotado, humilhado, cansado, a cheirar mal voltei derrotado para casa. Deitei-me sem comer. Bom, saquei um par de escaravelhos do caixote de lixo que me souberam maravilhosamente bem. Após umas horas de sono, pensei, voltarei a ser humano de certeza.

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