Thursday, October 26, 2006


The strangest thing...

Banda sonora – Tricky – strugglin’

Que dia, mas que dia... passado na faculdade, uma investigação para a EAA que queria fazer há cerca de umas semanas. Aviso o leitor, encontro-me neste momento sentado com uma garrafa de vinho praticamente vazia ao meu lado. Nobody but me, has been talking to the bottle.

Encontrei o Kosovar. Ine’s ou Ane’s, baralho o nome dele, admito, é um homem estranho embora sinta que já tenho encontrado bastantes pessoas de países fechados na vida para compreender que ele não tem nada de estranho, apenas uma mentalidade própria. Um kosovar? É um romeno without all the luxury. Perguntei como que casualmente o que é que ele achava das holandesas. Nada me surpreendeu na sua resposta, vira louco com elas. Claro, (boa sorte em encontrar uma que queira ir contigo para o Kosovo parir sete crianças...).

De qualquer forma fomos tomar um café no bar da faculdade, um pequeno bar dentro do edificio da faculdade onde se acham muito radicais porque eventualmente uma pessoa pode comprar uma cerveja lá. Enfim, a charada Holandesa continua. Subitamente, pergunto-lhe como era a vida dele no Kosovo. Interessa-me saber, interessa-me saber como se vive actualmente no Kosovo e interessa-me saber como era a vida deste gajo que aqui veio parar. O que se passa nele, que pessoa será. Se existe um assassino entre nós, como será ele? Poderá ser este?

Ironicamente, as grandes revelações que recebi na minha vida, foram sempre entregues em tom pausado. Quando as pessoas fazem uma grande cena da sua noticia, não costuma ser uma grande noticia. Geralmente, são pessoas a quem nada acontece de extraordinário que costumam ter a prepotência de se sentir importante, certamente o são, mas apenas no seu pequeno mundo. Para a generalidade, quem conta com grande alarme as suas novidades, o seu cão mais esperto que todos os outros, os seus problemas maiores que todos os outros, não há na verdade grandes noticias a contar. O Anes é diferente, e foi calmamente, com as suas grandes mãos em cima da mesa e o volume baixo da sua voz a embalar o café que se encontrava à sua frente, que, do nada, ele me decidiu contar a sua vida no Kosovo. Bom, do nada não, porque eu perguntei, mas nada me preparava para ouvir o Anes, grande, a falar para dentro, tímido até, a contar aquilo que ele me contou. Como no ramadão não come durante o dia, como se senta sempre em almofadas. Que é normal no Kosovo uma pessoa descalçar-se quando entra em casa de alguém pois as estradas são enlameadas e, sobre o que fazia antes, como “queimou” a trabalhar para as nações unidas. Contou-me que trabalhava na investigação de crimes que podiam ser violações de direitos humanos. Foi aí que conheceu o Hannappel e, farto do mesmo, aceitou o convite deste para se juntar a nós em Leiden. Ele é um convidado especial de Leiden e do governo Holandês. “eeeehhh...a big step since the UÇK”.

Nesse momento vibrei, como se as minhas orelhas se pudessem erguer perante um som que me chama a atenção quis saber mais, quis saber tudo, o Anes tinha pertencido à Frente de Libertação do Kosovo, considerados por uns como terroristas, por outros como salvadores e sem nunca se livrar do titulo de assassinos de sérvios e albaneses, quis saber, queria naquele momento saber tudo, naquele pequeno café da faculdade de direito, onde toca Cesária Évora e, para grande surpresa e avanço das populações locais, é possivel comprar alcool. Poucos holandeses sentados nas mesas às nossas voltas, e o Anes decide-se a contar algo. Pouco, muito pouco, mas a bençâo de saber, em primeira mão, o que é pertencer à Frente de Libertação do Kosovo e hoje estar em Leiden, é de agradecer, seja a que titulo.

Segundo ele me contou, increveu-se na Frente de Libertação do Kosovo contra a vontade dos seus irmãos. No total eles são seis, quatro rapazes e duas raparigas. Na altura, 1996 a FLK começava a crescer e a fazer-se notar. Foi a altura de fazer alguma coisa. Os primeiros treinos militares, (conduzidos por alemães!!!!), conhecer Haradin Bala e fazer parte de uma das sete zonas de comando militar da FLK, para no fim participar na guerra civil e ver as FLK serem desmembradas. Na altura então, aparece a proposta, integração nas nações unidas enquanto a maior parte dos colegas formou a policia local. A transferência para Leiden, o convite para terminar nas aulas do Haannappel. Aparentemente enganei-me, sempre há alguém entre nós que não sabe o que é um “APU”.

Que pessoa especial, que vida diferente, só consigo imaginar do pouco que ele me disse, não quis falar muito, também nunca o faz e imagino que o tema o incomode. Mas ser recrutado. Levado para um campo de treino na Albania. Na altura as mãos ainda deviam tremer. Aprender a usar uma AK-47, ter quase medo do calor que exala de uma arma que dispara. Depois, lançado numa campanha. A caminhar em busca de um sérvio, o ataque a uma aldeia ou uma cidade. Ver veteranos ao lado, dos que fazem apostas de quanto tempo ele aguentaria, mas ele aguentou. Ver vitimas, ver gente morrer à sua volta, foda-se, matar pessoas. As duas mãos brutas que estão à minha frente, mataram pessoas. Quantas? Não faço ideia, será que ele sabe? Deve certamente lembrar-se da primeira, a primeira vida tirada com a sua AK-47, o selvagem ataque a uma vila, matar sérvios porque são...sérvios. Uma mulher desventrada ao lado, o cheiro de queimado e de morte, que horrivel deve ser o cheiro de morte, mas ele habitua-se, ele aprende. De repente, atirado de volta para perto de Junik devido à ofensiva sérvia, perder amigos na ofensiva sérvia, cada um a lutar por si, o panico de ver outros morrerem, puxar o braço de alguém que não se levanta e ter de o deixar lá. A reorganização, voltar à carga, agora é guerra civil, agora tudo vale mesmo o que antes já valia sem se admitir. Desta vez, quando desciam no território, ele já não era um recruta, ele era um soldado veterano, ele sabia o que se passava, sim, olho para ele e os seus olhos castanhos e tristes dizem-me que ele sabe o que se passou, ele já queria, ele aprendeu a gostar e a precisar da morte, do seu cheiro e da cor do sangue, do vermelho escuro. Desta vez, largaram-no praticamente sozinho, uma pequena unidade composta de SA-7’s e Stingers com o objectivo de proteger o espaço aéreo, mas o Anes podia ser deixado sozinho, ele agora já sabia o que tinha de fazer, nunca duvidava do tiro. Amava a frente, adorava a morte, ele não era mais um soldado das FLK, ele era um soldado da morte. Até tudo acabar, até a guerra ser terminada, o seu superior enfrenta acusações em Haia, ele é recolocado, de repente trabalha com as Nações Unidas, crimes de guerra, que irónico um homem que esteve na frente, que matou e aprendeu a gostar (para não dizer que era uma necessidade) de matar. Agora cabe-lhe a ele julgar. Tudo muda, o papel é diferente e a pressão insuportável. Como resistir? Fugindo, fugindo cada vez mais daquelas montanhas pelas quais vendeu a alma, um país para a familia, em troca de qualquer esperança de voltar a dormir descansado, sem aldeias a arder na mente, sem sentir o espesso vermelho do sangue na mão. Num salto, Leiden e a pacatez de uma aldeia holandesa. A morte de Hannappel, que diferença poderá fazer para ele? Agora tranquilamente acaba o café, voltamos para as nossas vidas e para o silencio sepulcral da biblioteca. O Anes senta-se ao lado de uma rapariga loira roliça.

Que dia que tive, mudo aqui a banda sonora, uma garrafa que termina, chove lá fora, e escolho para ouvir...
Miles Davis – Flamenco Sketches (Alternate Take)

1 comment:

Trendy Jorge said...

Dois comentários condensados num só e sem o tom filosófico e reflexivo do post que lhes dá origem.

O primeiro, prende-se com a esperança de que a menção "Para a generalidade, quem conta com grande alarme as suas novidades, o seu cão mais esperto que todos os outros, os seus problemas maiores que todos os outros, não há na verdade grandes noticias a contar" não me tenha como visado. Mas ainda que assim fosse nem me parece que pudesse, efectivamente, aplicar-se, uma vez que, mesmo considerando que o meu cão é mais esperto que todos os outros, não penso que os meus problemas são maiores do que os dos outros (especialmente porque hoje conto ganhar o Euromilhões), nem empolo seja qual for a notícia que tenho para contar. Padeço sim, ao invés, da estranha sensação de que tudo é bastante aborrecido. Fica esclarecido, mesmo que a referência nada tenha a ver comigo.

Já o facto de pensar que tudo tem a ver comigo pode ser considerado um sinal de megalomania e presunção. Esse já seria um comentário justo.

A segunda coisa sobre a qual queria escrever era a estranha tendência que temos (eu também a tenho) de sobrevalorizar os acontecimentos e experiências passadas nesse grande universo que é o "Estrangeiro" (fica melhor lido com sotaque do Norte), menosprezando e esquecendo as nossas próprias experiências. Na verdade, e ponderadas as devidas distâncias (não apenas geográficas), qual é a diferença entre um jovem Kosovar recrutado (neste caso, até voluntário) para a FLK e um jovem português no final da década de 60 recrutado à força, metido num barco a caminho da Guiné para matar "pretos comunistas", sujeito às agruras do clima e do terreno, fustigado por uma guerrilha sem escrúpulos que o tornou, também a ele, isento de qualquer percepção fundada da realidade. Sendo certo que provavelmente nenhum foi para as Nações Unidas julgar ou detectar crimes de guerra ou violações de direitos humanos, o que tornará a sua história, potencialmente, menos interessante que a de um Kosovar que andou a abater sérvios. A diferença é que os anos 60 já lá vão há muito e nós nunca tivemos nenhum ex-combatente do Ultramar na nossa pós-graduação. Acompanhámos a crise do Kosovo nos jornais e televisão e a guerra do Ultramar apenas através de documentários a preto e branco que sempre nos pareceram "velhos" e datados. Não deverá interpretar-se o que aqui escrevo como uma crítica, eu próprio padeço desse síndroma de exaltação do que é "estrangeiro", seja música, cinema, literatura ou moda. Tu, muito mais conhecedor da história, mundial e portuguesa, do que eu, farás o teu juízo com inegável propriedade. De todo o modo, fico com a sensação que o Ultramar é tão ou mais "fascinante" (passo a expressão)que a libertação do Kosovo. Ainda assim, não deixa de ser uma história e experiência de vida muito interessante.

A banda sonora parece-me perfeita. Fiquei com vontade de resgatar os meus discos do Tricky da prateleira. O Miles, tanto o Bitches como o Sketches, esse anda sempre por perto.